sexta-feira, fevereiro 14

Beneficiários do Bolsa Família fizeram transações com rede ligada ao PCC e suspeita de lavagem de dinheiro


Foto: Roberta Aline/MDS

Beneficiários do Bolsa Família realizaram dezenas de transações com uma fintech investigada por envolvimento no esquema de lavagem de dinheiro da facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC.

Os relatórios financeiros a respeito dessas movimentações foram elaborados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e encaminhados no fim do ano passado pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) à Polícia Federal, responsável por investigar o caso. O avanço das apurações deve indicar se há de fato pessoas que recebem indevidamente o auxílio do governo federal e integram uma rede criminosa ou se esses beneficiários foram vítimas de golpes aplicados por clientes da fintech.

Um dos recebedores do Bolsa Família identificados no relatório é morador de Maricá (RJ) e acaba de completar 31 anos de idade. Autodeclarado vendedor de comércio varejista e atacadista, o homem recebe R$ 800 por mês do programa de transferência de renda — antes, teve acesso também ao Auxílio Emergencial e ao Auxílio Brasil. Apesar de o programa federal em vigência ser destinado a famílias que recebem até R$ 218 por pessoa, o morador de Maricá ostenta gastos que destoam desse perfil: apenas nos seis meses entre outubro de 2022 e março de 2023, passaram pelas suas contas R$ 345,6 mil.

O intenso entra e sai de dinheiro motivou a comunicação ao Coaf, em abril de 2023. Dentre as transações listadas no relatório, ao qual o GLOBO teve acesso, estão o recebimento de 72 transferências via Pix que totalizaram R$ 16.734 de uma conta da fintech 2GO, e o posterior envio de R$ 25.700 para esse mesmo remetente.

A mesma conta fez transações com uma empregada doméstica que mora no Recife (PE). Também beneficiária do Bolsa Família, que proporciona a ela R$ 350 mensais, a mulher recebeu 68 Pix que totalizaram R$ 8.295 no período de novembro de 2023 a abril de 2024. Para essa mesma conta, a mulher enviou de volta R$ 6.350 a partir de transações picadas: foram 113 operações.

Outra conta da 2GO operou também uma série de transferências via Pix para dois outros beneficiários do Bolsa Família à primeira vista sem conexão entre si: uma auxiliar geral de Contagem (MG), e um professor de Tutoia (MA). A fintech também fez transferências para um taxista de Barra do Piraí (RJ) e para uma autônoma de Aquidauana (MS) — ambos igualmente assistidos pelo programa social do governo.

Ao Coaf, os bancos que reportaram as movimentações suspeitas relataram que os clientes apresentaram “perfil incompatível” com o de beneficiários de programas sociais, com “intensa movimentação de recursos, principalmente através de transferências instantâneas”, o que “causou estranheza”.

Ao todo, as duas contas da 2GO identificadas no relatório aparecem em transações com 68 pessoas que tiveram atividades reportadas por bancos, cartórios e empresas de crédito ao Coaf no período de novembro de 2022 a outubro do ano passado.

Como mostrou o GLOBO, a 2GO Bank foi fundada em 2020 pelo policial civil Cyllas Salerno Elia Júnior, à época lotado no Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), órgão da Polícia Civil paulista responsável por atuar em ações estratégicas contra o crime organizado. A empresa foi alvo de operação da PF em novembro, após investigação indicar que os clientes da fintech a utilizavam para fazer movimentações financeiras anônimas, de difícil rastreabilidade, e encobrir dinheiro de origem criminosa.

Em seu acordo de delação premiada com o MP-SP, o empresário Antonio Vinicius Gritzbach afirmou que a 2GO Bank era ligada a Anselmo Becheli Santa Fausta, o “Cara Preta”, e a Rafael Maeda, o “Japa”, ambos integrantes do PCC que foram assassinados na Zona Leste de São Paulo. O próprio Gritzbach veio depois a também ser executado, na saída do Aeroporto de Guarulhos, em novembro do ano passado.

O Coaf atua no combate a crimes financeiros como a lavagem de dinheiro e pode ter a colaboração da Receita Federal, responsável por coibir fraudes fiscais. Ambos os órgãos têm a prerrogativa de acionar a Polícia Federal ou o Ministério Público caso se deparem com indícios de crimes.

O governo revogou no mês passado uma instrução normativa que pretendia ampliar o escopo da fiscalização da Receita Federal após uma enxurrada de fake news associar a mudança a uma falsa taxação do Pix. Agora, fintechs como a 2GO voltam a ser desobrigadas a reportar movimentações ao órgão, o que diminui os caminhos para as autoridades identificarem irregularidades envolvendo essas empresas.

— Os bancos são obrigados a informar movimentações suspeitas ao Coaf, enquanto a Receita recebe informações globais, menos detalhadas, e confronta essas informações com outras bases de dados para identificar possíveis fraudes fiscais. Caso encontre algo, ela chama o contribuinte a se explicar. Se a pessoa não conseguir, abre-se um procedimento interno de fiscalização que pode levar à quebra de sigilo bancário e resultar em um auto de infração. Se houver indício de outros crimes, a Receita pode oficiar os órgãos competentes para investigar — explica o advogado André Felix Ricotta, doutor em direito tributário e sócio da Felix Ricotta Advocacia.

Em nota, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), responsável pelo Bolsa Família, informou que faz avaliações para identificar situações de inconsistência de renda de modo “rotineiro” e que iniciou estudos em agosto do ano passado para “aprimorar o procedimento” em 2025. A pasta afirma que o novo Cadastro Único (CadÚnico) entrará em operação em março e garantirá “maior precisão e confiabilidade” das informações, além de ajudar a evitar fraudes.

“A medida visa aprimorar a destinação dos recursos e assegurar a focalização do programa, e não gerar economia, uma vez que os benefícios devem ser pagos a todos que atendam aos critérios de elegibilidade”, acrescentou a pasta.

A Controladoria-Geral da União (CGU) também faz auditorias para identificar beneficiários incompatíveis e rastrear “sinais exteriores de riqueza”, conforme um auditor explicou ao GLOBO. Procurado para comentar o caso, o órgão informou que não se manifesta sobre fiscalizações “até que estejam finalizadas e permitam que resultados efetivos sejam apresentados”. Em relatório publicado em dezembro, a CGU indicou que a desatualização e inconsistência nos dados dos beneficiários do Bolsa Família prejudica a identificação daqueles que descumprem as condições para receber o auxílio do governo.

A Polícia Federal não quis comentar o caso. Também procurada, a 2GO Bank não respondeu aos pedidos de manifestação.

O Globo

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