EU SOU SURDO

Ó Homens que me julgais caprichoso, intratável ou misantropo, quantas injustiças me fazeis.

Não conheceis as razões secretas que me forçam a parecer assim.

... Dotado de temperamento vivo e ardente, sensível mesmo aos atrativos da sociedade, fui obrigado a cedo dela afastar-me e a viver uma vida solitária...

...E ser-me-ia impossível então dizer aos homens:

- Falai mais alto! Gritai! Eu sou surdo.

Ah... Como confessar a fraqueza de um sentido que eu deveria possuir em grau mais perfeito que os demais; de um sentido que fora outrora de perfeição, tal como poucos artistas como eu o tem possuído?!...

Perdoai-me, portanto, se me vedes afastar-me de vós! Essa desgraça me é duplamente penosa, pois é a causa de ser eu mal julgado! Para mim não existe encanto nas reuniões sociais, nas conversações elevadas, nas confidências intimas; vivo quase sozinho e somente o limite da mais imperiosa necessidade me faz procurar a sociedade. Hei de viver como um exilado; se me aproximo de um grupo apodera-se de mim um terror pungente pelo perigo que corro de que se note meu triste estado l.

... Que humilhação quando alguém, parado a meu lado, escutava ao longo uma flauta, sem que eu nada ouvisse, ou quando alguém ouvia cantar um pastor enquanto eu, tampouco, nada percebia! Esses fatos me faziam desesperar; pouco faltou para que eu mesmo pusesse fim a minha existência.

Somente ela, a arte, me reteve; parecia-me impossível deixar esse mundo antes de criar tudo aquilo para o que eu me sentia feito e por isso suportei esta vida infeliz, verdadeiramente infeliz.

Beethoven, documento dirigido a seus dois irmãos, com a indicação de só dever ser lido após sua morte.

Beethoven, de Romaim Rolland.

CHAKRA ALVES

CHICO TORQUATO