domingo, abril 27

A banalidade do mal em verde e amarelo: por que Déboras não são inocentes


(Imagem: Gabriela Biló/Folhapress)

Por Wilson Gomes*

“Nos últimos meses, setores bolsonaristas têm tentado transformar os sediciosos do 8 de Janeiro em mártires da liberdade. O caso mais notório é o da cabeleireira Débora, condenada a 14 anos de prisão por participar da invasão da praça dos Três Poderes. “Ela só escreveu ‘Perdeu, mané’ com um batom”, diz o deputado Nikolas Ferreira, que chegou a compará-la a Rosa Parks, a moça do Alabama que se recusou a ceder o lugar no ônibus por dignidade e virou símbolo da luta pelos direitos civis nos EUA.

A comparação, para além do insulto histórico, revela algo mais profundo: uma operação de limpeza moral que tenta apresentar os golpistas como “pessoas comuns” injustamente perseguidas por um Estado tirânico.

É aqui que a filósofa Hannah Arendt oferece uma chave precisa para pensar o mal na modernidade. Quando Adolf Eichmann, funcionário-padrão da burocracia nazista, foi capturado e julgado em Jerusalém, em 1961, Arendt cobriu o julgamento como enviada da The New Yorker e ficou impressionada: ele não parecia um monstro, nem um sádico, nem um fanático. Parecia apenas… um homem comum.

Eichmann era medíocre, burocrático, vaidoso em sua obediência às regras e incapaz de refletir eticamente sobre os próprios atos. Isso levou Arendt a formular a tese da “banalidade do mal” —não no sentido de inofensivo, mas porque pode ser cometido por pessoas comuns, sem intenções malignas, sem ódio e até sem crueldade, apenas por conformismo, carreirismo, covardia moral ou irreflexão.

Arendt afirma que o mal radical não está necessariamente na intenção destrutiva, mas na suspensão do pensamento. Para ela, pensar é julgar, é colocar-se no lugar do outro, é aplicar critérios morais. O homem comum de um sistema ou movimento autoritário abdica de pensar —e, assim, abdica da responsabilidade.

Eichmann é banal porque é fácil ser Eichmann. O mal deixa de ser algo que vem de indivíduos monstruosos e passa a ser uma possibilidade concreta quando se cultiva a obediência cega, o conformismo, o anti-intelectualismo e o desprezo pelo julgamento ético.

Débora não é um monstro. Nem é Bolsonaro, Braga Netto ou Mário Fernandes. Não planejou o golpe, não escreveu seus roteiros. Mas estava lá —e sua presença não foi decorativa. A mulher exaltada como símbolo de injustiça por setores bolsonaristas pode muito bem ser uma pessoa comum: uma mãe de filhos, uma cidadã religiosa, uma trabalhadora. Seu gesto —trivial e “lavável”— fez parte de uma encenação cuidadosamente orquestrada para legitimar uma intervenção militar. A questão aqui não é a dosimetria da pena —talvez 14 anos seja excessivo. Mas trata-se de reconhecer que não se trata de inocência.

Débora, a velhinha da Bíblia e outras mães de família que deixaram seus filhos para acampar diante de quartéis não foram vítimas ingênuas. Foram peças fundamentais de um projeto autoritário: sem a “pessoa comum” para dar rosto humano ao levante, não haveria narrativa de povo oprimido nem ilusão de resistência patriótica.

Não estavam no topo da hierarquia golpista, mas justificavam simbolicamente todo o sangue que se derramaria caso o golpe triunfasse. São responsáveis —não porque pensaram o golpe, mas porque se ofereceram à engrenagem que o faria parecer legítimo. Débora não precisava saber de todos os detalhes do plano —bastava estar ali, no lugar certo, na hora certa, fazendo o que se esperava dela.

Arendt ajuda a entender isso. Mas o bolsonarismo produziu dois tipos ainda mais específicos.

O “inocente útil” —figura consagrada desde a Guerra Fria— é aquele que, mesmo sem plena consciência, empresta sua presença a um projeto que não compreende. Já o “idiota motivado” —conceito que venho usando desde 2013— está um degrau acima: não apenas coopera mas se converte. Sua ignorância é mobilizada por causas simplificadas, narrativas morais e senso de missão. Sente-se parte de algo maior —e por isso atua com entusiasmo, sem se dar conta de que é apenas massa emocional de um projeto golpista.

Essas figuras, supostamente inofensivas, oferecem densidade humana a causas autoritárias. Se o plano golpista tivesse funcionado, haveria assassinatos, perseguições, cassações, prisões —como acontece em toda ruptura autoritária. Déboras não precisariam apertar gatilhos nem assinar decretos. Teriam feito sua parte: legitimar, com sua presença e seu gesto, a encenação do “povo contra as instituições”.

Como ensinou Arendt, o mal nem sempre se veste de ódio. Às vezes, basta uma bandeira, uma oração —e uma convicção sem pensamento.”

*É Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada”.

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Blog : Bruno Barreto

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